Mutação de um vírus pode ser rastreada e até servir de prova contra criminosos



No final da década de 1980, o órgão americano responsável pelo controle de doenças infecciosas investigou a ocorrência de aids em uma paciente. A jovem americana descobriu-se portadora apesar de afirmar não ter se exposto ao vírus. A investigação de sua infecção não mostrava a forma de contágio. A jovem não usara drogas injetáveis, não recebera sangue em transfusões, não fizera tatuagens, não realizara acupuntura e negava ter mantido relação sexual com parceiros suspeitos. Seus dois antigos namorados fizeram exame de aids. O resultado de ambos foi negativo. O mistério permanecia.

A pista surgiu com a descoberta de que a jovem recebera tratamento dentário quase dois anos antes de descobrir sua infecção. Seu dentista da Flórida portava o vírus. Esse profissional poderia ter transmitido a doença? O tratamento foi habitual, o dentista não se cortou e nem perfurou sua pele com os instrumentos usados na paciente. Caso tenha havido a transmissão, foi de maneira despercebida. Uma pequena perfuração de suas mãos com a agulha da anestesia? Um mínimo corte dos dedos com o instrumento dentário? Esses pequenos acidentes poderiam levar seu sangue à paciente, mesmo usando luvas. Como comprovar que o vírus do dentista infectou a paciente? A resposta estava na seqüência genética do vírus.

O vírus é transmitido de pessoa para pessoa. Um paciente (chamemos de paciente 1) transmite o vírus para outra pessoa (chamemos de paciente 2). Esta última passará seu vírus adiante para a próxima (paciente 3) e assim por diante. As mutações virais se acumulam em cada indivíduo infectado de tal maneira que o vírus do paciente 10 será bem diferente do paciente 1 que originou a seqüência de infectados. Por outro lado, o vírus de qualquer paciente será muito semelhante ao da pessoa que o infectou.

Os vírus da paciente e do dentista foram analisados. O RNA de ambos era muito semelhante. As mesmas mutações encontradas no vírus do dentista estavam presentes no da paciente, exceto por algumas pequenas diferenças em decorrência do tempo. Não havia dúvidas de que o vírus da jovem era descendente do vírus do dentista. Além disso, ambos eram bem diferentes dos vírus que circulavam entre a população daquela região.

Esse caso alertou as autoridades de saúde, que recrutaram os pacientes do dentista para realizarem exames. Aqueles com sorologias positivas para aids tiveram o material genético de seus vírus comparado com o do dentista. Encontraram mais cinco pacientes contaminados pelo vírus do profissional.

Uma série de debates envolve o caso. O mecanismo da transmissão permanece um mistério, o que abre as portas para especulações. Seria uma infecção intencional? Um ato criminoso? Provavelmente um acidente de perfuração com agulha ou fios de sutura expôs os pacientes ao sangue do dentista. Especulações quanto a real forma de transmissão são aventadas, porém a comparação do material genético dos vírus demonstra a enorme probabilidade da transmissão ter sido causada pelo dentista.

Assim, no início dos anos 1990 aconteceu a primeira provável confirmação de transmissão do vírus da aids. Abriu as portas para que pudéssemos comparar os vírus de pessoas diferentes a fim de resolver disputas jurídicas. O vírus da aids começou a sentar no banco dos réus.

Em agosto de 1994, um médico de Los Angeles vivia o fim de um relacionamento com uma enfermeira da mesma cidade. O desfecho não ficou apenas em mágoas e rancores. A enfermeira recebeu de seu amante uma injeção muscular supostamente de vitaminas para que desempenhasse suas tarefas com maior disposição. O leitor suporia o desfecho e presumiria que horas depois ela foi encontrada morta. Não foi o caso. A enfermeira continuou sua rotina diária normal até janeiro do ano seguinte. Época em que realizou um exame para aids como outros tantos. Esse exame diferiu dos demais. Para sua surpresa se revelou positivo. Estava infectada.

A enfermeira recebeu a notícia com transtorno e o que seria o término de um relacionamento amoroso tornou-se um caso criminal. Ela suspeitou e acusou seu ex-amante de tê-la contaminado com o vírus da aids naquela injeção. O gastroenterologista, o ex-amante, foi à corte. O médico não imaginava o avanço da ciência em comparar vírus para saber a fonte de origem. Da mesma maneira que os estupradores não imaginariam que a ciência viria a recolher seus espermas nas vítimas e submetê-los ao teste de DNA, para compará-los e comprovar que eram provenientes do suspeito. Os investigadores vasculharam os prontuários dos pacientes do médico.

Encontraram aqueles que haviam se consultado nos dias próximos ao suspeito crime. Identificaram uma ficha médica que pertencia a um paciente portador do vírus da aids. Ele se consultou no mesmo dia da tal injeção e teve uma amostra de seu sangue colhida no próprio consultório médico. A acusação era a de que o médico retirou amostra de sangue do paciente e misturou-a à seringa usada na sua ex-amante.

O paciente e a vítima forneceram nova amostra de sangue para isolar seus vírus da aids. Ambos tiveram seu material genético mapeado e as mutações comparadas. Vírus de outros portadores da mesma cidade foram recolhidos para servirem de comparação. Os exames não deixaram dúvidas. As mutações dos vírus da vítima e do paciente eram idênticas. A árvore genealógica provou que o vírus da enfermeira descendeu do vírus daquele paciente. As impressões digitais de ambos os vírus coincidiram. O médico foi sentenciado a cinqüenta anos de prisão.




TRECHO DO LIVRO: 

A HISTÓRIA DA HUMANIDADE CONTADA PELOS VÍRUS
Bactérias, Parasitas e Outros Microrganismos...

AUTOR: Stefan Cunha Ujvari, 
médico infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz - São Paulo. Mestre em doenças infecciosas e especialista em doenças infecciosas e parasitárias pela Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), professor da disciplina de Emergência Médica na mesma universidade

Editora Contexto, 2012

Comentários

  1. E agora o que fazer?
    Somos todos manipulados. Qu dará a resposra certa. So Deus.

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