Os frutos da paixão

Cena do filme "Os frutos da paixão", de 1981.

É sempre bom lembrar que um filme sempre tem duas faces. A mais simples e a mais profunda.

A primeira é a historinha que começa, se desenvolve e acaba. É também a mais superficial e mais fácil de ser percebida e recontada. Ensina quase nada e talvez deixe no espectador uma noção de cores, uma música bonitinha ou emocionante, um refrão ou uma mania qualquer inventada pelo ator para deixar o personagem mais interessante. E só.

A segunda, a mais profunda, só existe nos filmes bons e ótimos. E deixa marcas fortes, noções desafiadoras, leva o espectador a pensar e reagir de modos diversos. De repente, esse espectador se dá conta de que uma mudança ocorreu em sua vida a partir do filme, como a busca por um jeito de pensar ou de agir, um silêncio onde andes havia um barulho ensurdecedor. Aquilo que o espectador é ficou diferente. Ele mesmo não percebe, mas os outros percebem e é isso que faz com que algo mude de fato.

Por isso, todo filme é uma psicanálise prática. E os caras que fazem filmes sabem disso. E por saber disso é que devem ser analisados, resenhados e criticados, para o bem ou para o mal. Pela mesmíssima razão, os caras das plataformas digitais, do Facebook ao passa quatro que o pariu, também devem ser examinados. Por que eles sabem o que estão fazendo, eles sabem que estão transformando as pessoas, fazendo-as virar um produto que consome produtos.

O filme pode ser assistido repetidas vezes na plataforma do Belas Artes À La Carte, portal de filmes administrado por um velho cinema de rua que foi aprendendo, na marra, que os tempos são mesmo virtuais e um serviço de filmes à la carte pode até dar lucro.

Isso começou, claro, por vias mais modestas e foi vertiginosamente acelerado com a fraudemia chinesa, amplamente engordada no Brasil por prefeitos e governadores corruptos. Acrescente a isso alguns milhões de pessoas medrosas, que usam máscara até para mijar em casa, e o Circo Brasil está descrito. Foi bom pra mim, que assisto a filmes todo malvado dia, sem deixar de ler, de estudar e até de mijar sem máscara.

Isso dito e, finalmente, chegamos ao filme Os frutos da paixão, do japonês Shuji Terayama, realizado na França, onde foi lançado em 1981 com censura para menores de 18 anos.

Como sempre faço, eu não conto o filme, eu falo dos significados e do impacto das mensagens propostas.

Na primeira linha de análise, aquela descrita nas primeiras linhas como superficial, está a ação de homem aparentemente homossexual enrustido que lança suas vontades contra mulheres inocentes, geralmente naquele ambiente típico, bordel, cassino, putaria e violência. Quem entendeu o filme assim ficou estacionado no tédio e num talvez sentimento de repulsa. E só.

Quem quiser entender o filme precisará saber que o diretor colocou debaixo desse angu uma dose cavalar daquilo que o escritor japonês Haruki Murakami colocou em vários dos seus livros, sobretudo em “Kafka à beira-mar”. Mas que fique claro, o filme de Terayama nada tem a ver com os livros de Murakami.

Terayama explora o contraste pureza ingênua versus amor perveso. Trata-se de ver o mal que ambos fazem a si mesmos e ao outro, seja lá com que desculpa for. Assim, toda cena, do começo ao fim, obedece à trama dos desejos. Numa segunda camada, há o jogo de imagens de fundo, com praticamente uma galeria de fantasmas humanos vestidos de gente, ora submetida ao jogo das circunstâncias, ora repetindo uma cena de seu passado infantil. Mas sem determinismo ou repertório psicoanalítico.

Ao contrário de diretores como Bergman que mergulham em camadas que burilam seus filmes a partir do repertório da psicanálise, Terayama prefere lidar primeiro com os estados concretos em que os personagens iniciam seu trajeto rumo a objetivos. A moça que deseja um amor profundo como relacionamento, que lança olhares puros, gestos indefesos, surge aceitando o desafio de viver num cassino-bordel. A regra a seguir é clara: jamais poderá rejeitar qualquer pedido de um cliente, seja de que espécie for. Quem a conduz? O homem que ela diz amar. E quem é esse homem?

Quem assistir ao filme verá que o homem é também fruto de alguma noção de amor, primeiro a si mesmo, depois ao mundo como ele é visto, perverso, danoso, violento, sem espaços para purezas totais.

Entre um polo (o do trato aceito e iniciado) e outro (o das consequências da chamada realidade), o espectador verá um desfile de seres igualmente movidos por ímpetos de toda sorte. É o filme dizendo: “saia pelo mundo expondo seus sonhos dourados e suas boas intenções e veja o que acontece”.

E o que acontece é outra camada do filme. A forma como a pureza se entrega a um cliente que vai possuí-la de quatro, associando-a uma pomba e esperando que ela faça os movimentos da ave. Ela não sofre, aceita em nome do amor, e o faz de olhos fechados.

Noutra cena, a pureza vai chupar o pênis de um açougueiro que cheira a sangue, sem pensar duas vezes, mas sempre de olhos fechados. Faz isso (e Terayama capricha no requinte) de olhos fechados, como se estivesse chupando uma bala, doce e agradável.

A mensagem é clara: a ingenuidade aceita tudo, corre riscos que não percebe, vive o corpo como entrega sem prazer, vive de olhos fechados. E por viver de olhos fechados, quando os abre corre o risco de descobrir mais uma forma de continuar ingênua, se apaixonando por alguém ainda mais ingênuo.

De outro lado, o homem condutor, o mestre das práticas boas e más, o que dá as cartas, o experiente, vai se lançar numa corrente de observações contínuas de sua presa, aquela que aceitou ser prostituta para provar seu amor. Revela desejo pela pureza mas como curiosidade enquanto realiza seus desejos diretos com uma mulher mais bela e mais experiente, mais observadora, mais sagaz, dona de uma boa noção de onde fica a linha de contraponto ao amor ingênuo, atenta à linha pela qual se estabelece o amor-próprio e sua capacidade de autopreservação.

É curioso que o encontro de duas linhas de ingenuidade é que vai levar ao desfecho, talvez inevitável. O filme se encaminha no sentido de convidar a uma reflexão: a entrega ingênua tem uma função? Como nasce essa ingenuidade? Está mesmo no passado de cada um? A cena de uma gueixa açoitando um homem, um juiz, que requer esse tratamento como elemento de prazer sexual, é sobreposta à cena dela mesma, garotinha, açoitando seu próprio pai, bêbado e perdido na vida. Mas nada há de determinismo, o filme lança essa charada aos psicanalistas. Foi coincidência? É possível que sim.

Fato a notar: apesar da temática sexual recheada de perversões, será raríssimo o desejo sexual provocado no espectador, antes ocorrerá o contrário. Nessa camada de percepções, o espectador talvez saia do filme à procura daquela linha de auto-observação estabelecida pela parceira sexual do filme, a bela, a bela que pensa, a bela que talvez seja o outro lado da ingenuidade, a bela que sabe correr riscos e, por isso, tem direito ao prazer, seja já como quiser.

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