Ianoblefe, o massacre dos ianomâmis, que nunca existiu



Por Janer Cristaldo

"O ano de 1993 ficará na história do jornalismo como o do maior blefe já registrado na imprensa nacional e internacional, o "massacre" dos ianomâmis que, mesmo sem ter ocorrido, provocou lesões irremediáveis na imagem do Brasil no exterior. A farsa teve duplo efeito. Em primeiro lugar, chamou a atenção internacional para uma chacina que simplesmente não aconteceu. Em segundo lugar, mesmo não tendo ocorrido, confirmava a existência de uma tribo que no Brasil não existe. Pois a nação ianomâmi, embora já pertença à "História do Brasil", em alguns manuais didáticos e irresponsáveis, não passa de uma criação ficcional de uma fotógrafa suíça, Cláudia Andujar, de nome tão pouco suíço, que nos anos 70 andou em Roraima fotografando, vacinando e rebatizando índios de diversas tribos distintas entre si, falando dialetos também distintos. As lesões à imagem do país atingiram ainda o público nacional: hoje, dificilmente algum brasileiro aceitaria a hipótese de que os ianomâmis não existem.

A Justiça brasileira demorou um ano e alguns dias para oficializar a morte de Ulysses Guimarães, ocorrida em 12 de outubro de 1992. Há foto do deputado entrando no helicóptero que caiu no mar, foram encontrados os corpos do piloto e de sua mulher, há uma evidência absoluta da morte do parlamentar. Somente em 24 de setembro de 1993, sua morte foi reconhecida pelo juiz Paulo César de Almeida Sodré. Oficialmente, no entanto, Ulysses só foi considerado morto em 15 de outubro de 1993, quando o despacho do juiz foi publicado no Diário Oficial da União. Esta demora de um ano para o reconhecimento de uma morte evidente deveu-se ao fato de que o cadáver do deputado não havia sido encontrado.

As autoridades brasileiras, em 24 horas, definiram como genocídio um suposto massacre sem cadáver algum, "ocorrido" na Venezuela. Já foram encontrados os corpos do czar Nicolau II e da família imperial russa, assassinados pelos bolcheviques em 1918, e até hoje não temos um único indício de uma chacina ocorrida em 1993, com repercussões internacionais que ameaçam a soberania do Brasil sobre seu território. Tivemos inicialmente 19 mortos, depois 40, depois 73, depois 89, depois 120, depois 16, quando de fato não houve e até hoje não há cadáver nenhum. Enfim, achou-se uma ossada, de data incerta, que não evidenciava massacre nem dava indícios de assassino algum.

O então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, contentou-se com esta ossada antiga para denunciar, de imediato, genocídio. A Polícia Federal, apesar das continuadas declarações de que não havia prova do crime, não hesitou em fazer um relatório, mais de dois meses depois da data da "chacina", denunciando 23 garimpeiros pelo assassinato de 16 índios, dos quais não se achou sequer um pedaço de osso. A imprensa mostrou fotos de cabaças que conteriam as cinzas dos corpos cremados. Que não podem ser examinadas, pois são "sagradas".

Sem prova alguma de nada, a Procuradoria da República denunciou por crime de genocídio 24 garimpeiros, acrescentando mais um aos relacionados pela Polícia Federal. Pela primeira vez o Ministério Público apresentou à Justiça brasileira este tipo de denúncia, revelando uma notável falta de que fazer. Os 24 indiciados em geral por apelidos passaram a arriscar uma condenação de 30 anos de prisão. Parlamentares, bispos e cardeais, diplomatas, policiais, militares, jornalistas, todos foram envolvidos pela "chacina" e dela se tornaram cúmplices. Congresso Nacional, Forças Armadas, Conselho de Defesa Nacional, Igreja Católica, imprensa nacional e internacional, enviados especiais e correspondentes do exterior, governo brasileiro e governos estrangeiros, todos caíram no conto do genocídio.

A vida imita a tese — Meio ano depois do "massacre" não se tinha um único cadáver em punho. Segundo o procurador Aurélio Rios, o crime de genocídio é "do tipo que exige a comprovação de sua materialidade. O assassinato de seis ianomâmis no final de julho não resultou em abertura de inquérito porque os corpos não foram encontrados".

Segundo o coordenador regional judiciário da Polícia Federal de Manaus, Lacerda Carlos Júnior, que acompanhava em Boa Vista as investigações, "enquanto não forem localizados os corpos dos índios mortos não se poderá admitir a hipótese de uma chacina que, segundo a versão da Funai e da Procuradoria-Geral da República, matou 73 pessoas".

Na falta de cadáveres, recorreu-se ao testemunho do antropólogo norte-americano Bruce Albert, para dar um fecho de ouro à affaire. Não que Bruce Albert tivesse assistido ao massacre. Ele apenas traduziu o relato de índios que "teriam" sobrevivido ao massacre. Com exclusividade, a "Folha de S. Paulo" (03/10/93) contou a "história secreta do massacre".

Bruce Albert defendeu sua tese de doutorado, "Temps du Sang, Temps des Cendres", na universidade de Paris-Nanterre. O título é sugestivamente aliterativo: sang, cendres. Mais uma vez a vida imita a arte: tempo de sangue, tempo de cinzas. O olhar premonitório do antropólogo, que na época estava elaborando a biografia de Davi Kopenawa que pretendia se candidatar a deputado federal em 94 antecipou a chacina. "Houve muita imprudência com os números", disse Bruce Albert. "Não vejo a possibilidade de terem morrido mais de 70 índios na região", declarou então. Mais tarde, desmentindo inclusive seu potencial biografado, que ouviu falar de 19 mortos na Rádio Nacional, reduziu para 16 o número de mortos e dividiu o massacre em dois anos.

Em duas páginas ilustradas por fotos de "ianomâmis", panelas furadas e pedaços de ossos inidentificáveis, o antropólogo narra detalhes rocambolescos da chacina que não viu. Há um grupo de seis índios que chega a um barracão de garimpeiros com um bilhete, expedido por outros garimpeiros, onde se lê: "faça bom proveito desses otários". Onde está esta peça ainda que ínfima de convicção? Também virou cinzas: a cozinheira que recebeu os índios a jogou no fogo. Há garimpeiros que atiram à queima-roupa com espingardas de dois canos, um "ianomâmi" que se joga no rio Orinoco, há corpos enterrados e desenterrados, garimpeiros mortos e feridos e, evidentemente, os corpos cremados e as cabaças com cinzas, lacradas com cera de abelha. Só não há um único cadáver tangível, fotografável.

Bruce Albert tem então a ocasião de brandir sua tese: "Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos".

Ou seja: não há cadáveres porque foram reduzidos a cinzas. Estas não podem ser examinadas porque serão destruídas em ritos funerários. E os assassinos ou seja, os garimpeiros em geral devem ser impedidos de entrar em "território ianomâmi", conclui o cidadão norte-americano que, pelo jeito, goza de fé pública ante as autoridades brasileiras.

Que foi feito das pernas, braços, cabeças cortadas e fetos arrancados de ventres de mulheres grávidas, denunciados à agência de notícias "Ansa", pelo então Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira? Por mais perversos que fossem os garimpeiros e por que o seriam? quem tem estômago para cortar pernas, braços, cabeças e arrancar fetos de seres humanos? Os 19, 40, 73, 89, 120 e finalmente 16 cadáveres dos chacinados, anunciados nas primeiras páginas dos jornais do mundo todo, jamais foram encontrados. Nem mesmo os míseros três corpos "encontrados" inicialmente pela Polícia Federal.

O monte de cadáveres de ashaninkas, massacrados pelo Sendero Luminoso, não comoveu a imprensa nacional e internacional. O massacre dos índios peruanos não foi denunciado pelas ONGs à ONU e à Corte de Haia. Quando índios trucidam dezenas de brancos no Brasil, entre estes os funcionários da entidade da qual recebem assistência, jamais se fala em massacre.

Genocídio ou panelocídio? — A Polícia Federal brasileira investigou supostos crimes que, se tivessem ocorrido, teriam ocorrido na Venezuela. Este imbroglio nem o ministro da Justiça sabia em que país estava quando visitou o local do "crime" gera algumas indagações. Desde quando um crime cometido em país estrangeiro é tipificado pela legislação brasileira e investigado por policiais brasileiros? Qual legislação julgaria os 23 garimpeiros denunciados pela PF brasileira por um crime que se tivesse ocorrido teria sido cometido fora do Brasil? Desde quando fotos de cabaças que conteriam cinzas constituiram provas para qualquer tribunal?

Como cremar cadáveres que em fornos modernos exigem 1360 graus centígrados durante duas horas, deixando resíduos de dois quilos de ossos misturados com resíduos de carne em fogueiras rápidas no solo úmido de uma floresta tropical?
Dia 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta, de Boa Vista, Roraima, fechou com chave de ouro a ficção alimentada durante três anos pela imprensa: condenou cinco garimpeiros por genocídio praticado contra índios ianomâmis em 93. Pedro Emiliano Garcia, o Pedro Prancheta, foi condenado a 20 anos e seis meses de prisão. Eliézio Monteiro Neri, Juvenal Silva, Francisco Alves Rodrigues e João Morais foram condenados a vinte anos de prisão. Dois garimpeiros responderam o processo em liberdade e três à revelia.

Cadáveres, nenhum. Mas o juiz Catta Preta não tem dúvidas de que houve o massacre. Como prova do crime, aceitou laudos de antropólogos sobre os hábitos culturais dos ianomâmis a história das cinzas, formulada por Bruce Albert , além do depoimento de sobreviventes. "Pelos depoimentos colhidos, não tenho dúvida de que pelo menos doze índios foram mortos".

Se morreram na Venezuela, para Catta Preta tanto faz. Segundo ele, o código penal prevê que o genocídio, quando praticado por brasileiros, fica sujeito à lei brasileira. Seria interessante sabermos o que pensam disto os venezuelanos.
Sem cadáver não há crime, diz a boa doutrina jurídica. Os garimpeiros foram condenados por um crime que não houve. Pior ainda, pelo assassinato de índios de uma tribo que não existe. Naquele dia, em Roraima, foi atada com nó de tope a maior farsa jornalística, política e jurídica jamais ocorrida no Brasil, com sérias conseqüências para a integridade territorial do país.

A imprensa, em verdade, fotografou alguns sinais de violência na aldeia venezuelana onde teria ocorrido o massacre, várias panelas perfuradas por tiros. E só. Teríamos então um panelocídio, figura que jamais foi contemplada por qualquer código penal.

A ficção da fotógrafa — Se o antropólogo Napoleon Chagnon constatou a existência de uma tribo de ianomâmis na Venezuela, a extensão desta etnia a territórios brasileiros está longe de ser uma evidência. O blefe do massacre de ianomâmis em 93 repousa sobre um blefe anterior, ou seja, a existência de uma tribo ianomâmi no Brasil. Quem faz esta denúncia é o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, em "A Farsa Ianomâmi" (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995). Em função de seu ofício, o militar gaúcho trabalhou em Roraima desde 1969, onde teve estreito contato com a população indígena da região e jamais ouviu falar em ianomâmis, palavra que invade a imprensa brasileira e internacional somente a partir de 1973.

Segundo Menna Barreto, Manoel da Gama Lobo D'Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome".

Tampouco o leitor que hoje tenha 40 ou 50 anos jamais terá ouvido falar, em seus bancos escolares, da tal de tribo, que recebeu um território equivalente a três Bélgicas, como sendo suas "terras imemoriais". Imemoriais desde quando? Desde há duas décadas?

O cerne do problema não é a preservação do índio e suas tradições. Nas últimas discussões sobre a questão indígena no Brasil, geralmente omite-se um item, nada menos que o essencial: os protochanceleres da suposta nação ianomâmi reivindicam para seus protegidos um território de subsolo riquíssimo em ouro, diamantes, nióbio e cassiterita. Nenhuma ONG se preocuparia tão enfaticamente com as culturas hutu ou tutsi, em Ruanda, com a dos miskitos na Nicarágua ou com a dos ashaninkas no Peru.

Para o coronel Menna Barreto, nada melhor que o idioma para definir a linhagem e contar a história dos grupos humanos. Em suas primeiras missões na região, encontrou os maiongongues classificados no grupo Caribe e os xirianás, uaicás e macus, falando línguas isoladas. Como os primeiros exploradores e cientistas estrangeiros, jamais ouviu falar de ianomâmis.


"É preciso ficar claro antes de tudo que os índios supostamente encontrados por Cláudia Andujar são os mesmos de quando estive lá, em 1969, 1970 e 1971. Pode ser que, seduzidos com promessas, tenham concordado em renegar o próprio nome, deixando de ser os valentes que sempre foram, para se prestarem agora a esse triste papel. Ou, quem sabe, podem ter sido convencidos a vestir o apelido de "ianomâmis" por cima dos antigos nomes, numa forma de fantasia menos nociva aos valores e tradições indígenas... Entretanto, não é de se duvidar que, para cúmulo do desprezo pelos antropólogos nacionais, nada tenha sido feito para disfarçar a mentira e que, com exceção dos mais sabidos, eles continuem a ser os xirianás, os uaicás, os macus e os maiongongues de sempre, ficando essa história de "ianomâmis" só para brasileiros e venezuelanos".


"Mas os índios tidos como ianomâmis são os mesmos que lá estavam de 1969 a 1971. Tenho certeza porque voltei à região em 1985, 1986, 1987 e 1988, como Secretário de Segurança, e vi as malocas nos mesmos lugares e os índios com as mesmas caras de antes. E, muito embora essa afirmação possa parecer temerária, pela dificuldade de distinguir-se um índio do outro na mesma tribo, é fácil de ver que, se nesses vinte anos não se registrou nenhuma ampliação de malocas, nem há notícia da ocorrência de epidemias ou guerras entre eles, os atuais habitantes são os mesmos visitados por mim, quando Comandante da Fronteira ou, então, são descendentes deles".


Para este gaúcho que conheceu de perto e de longa data as tribos de Roraima, não é permissível enquadrar grupos tão distintos em uma única nação, "apagando-lhes as diferenças e variações culturais, quando a Antropologia tem como objetivo, ao contrário, salientá-las". Segundo Menna Barreto, as diferentes tribos hoje designadas genericamente pelo gentílico ianomâmi, são bem definidas e distintas entre si.

Ianomamização — Prossegue Menna Barreto: "os uaicás, por exemplo, têm conseguido, ao contrário dos demais, manter-se praticamente imunes a influências estranhas, seja pelo terror que sua ferocidade infunde, seja pela precaução instintiva de se retraírem para evitar a própria degeneração e o ocaso no convívio com culturas mais avançadas. Os xirianás, no entanto, não puderam evitá-las em suas tribos do Alto Uraricaá, do Motomotó e do Matacuni, mais sujeitas à força do gregarismo humano nas condições singulares que viveram. Os primeiros mantém estreito relacionamento com seus vassalos auaqués e um rudimentar comércio com vizinhos do grupo caribe. Os do Matacuni, por sua vez, vinculam-se cultural e comercialmente aos iecuanás do Alto Auari".

Os xirianás do Matacuni e do Uraricaá, segundo o autor, após terem exterminados os maracanãs, os purucotós e os auaqués, tornaram-se mansos e sedentários. Já seus irmãos do Motomotó, em sua limitada parceria com os macus, só alcançaram uma certa habilidade artesanal e uma relativa moderação da brutalidade primitiva. Outra parcela da tribo, das nascentes do Orenoco e do Médio Mucajaí, conservam o nomadismo e hábitos selvagens, sendo incapazes de construir malocas com troncos fazer canoas ou plantar roças. Ainda na mesma reserva ianomâmi, estariam os iecuanás-caribe, apelidados de maiongongues pelos macuxis e de maquiritares pelos venezuelanos, mais os remanescentes das tribos guinaú e iauaraná.

"Com tamanha profusão de línguas, raças e culturas, é indevido e absurdo" escreve Menna Barreto "classificar-se todos de ianomâmis. Fechar os olhos a esta evidente farsa para favorecer interesses escusos de outros países, em detrimento do Brasil, mais do que escândalo é traição".

Cláudia Andujar, em verdade, ianomamizou uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os "ianomâmis" passaram a "existir". Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação.

Imemorialidade posta em xeque – Se Menna Barreto não aceita a classificação de ianomâmis a toda uma profusão de línguas, raças e culturas, os defensores incondicionais de uma nação para a nova tribo não só insistem em sua existência como ainda em seu caráter imemorial em território brasileiro. A própria CCPY (Comissão Pró-Yanomami) parece não crer muito na imemorialidade desta posse. Em documento interno da comissão, A Prática do Yanomami, de autoria do lingüista Henri Ramirez, lemos que "não se sabe absolutamente nada sobre o passado remoto do povo yanomami". Para quem falava em povos imemoriais, já é um avanço. A única certeza que o lingüista encontra é que, no século XVIII, viviam confinados nas florestas montanhosas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Ao dar a descrição da região ocupada, o autor cita vários rios, todos eles situados na Venezuela. Segundo Ramirez, uma primeira vaga de ianomâmis invade o Brasil em 1915, alcançando o Marauiá e o Cauburi, no norte do Estado do Amazonas, fronteira com a Venezuela. Ou seja, os ianomâmis no Brasil são menos imemoriais que nossos avós.

Ainda segundo Ramirez, uma segunda leva de ianomâmis teria chegado aqui em 1945, fixando-se no Marari, nas cabeceiras do Padauari e no Demini. Em nome desta curtíssima imemorialidade, Andujar, missionários e antropólogos isolaram do Brasil 10 milhões de hectares. Em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso). Milagre do jornalismo eletrônico: jamais se construiu uma nação em tão pouco tempo.

Este isolamento, evidentemente, não é gratuito. Há muito se fala em uma nação indígena independente. Em Yanomami, Neuza Romero Barazal brande Bobbio para definir autodeterminação, a capacidade que "populações suficientemente definidas étnica e culturalmente têm para dispor de si próprias e o direito que um povo dentro de um Estado tem para escolher a forma de governo". E conclui que , no âmbito internacional, deveria ser reconhecido o direito de um povo não se submeter à soberania de um Estado contra a sua vontade, desde que considerado étnica e culturalmente definido.

Uma Cuba para latifundiários

Os uaicás, xirianás, iecuanás, macus e maiongongues, segundo Menna Barreto — ou ianomâmis, como os rebatizou Andujar — têm hoje a posse de 9,4 milhões de hectares, uma extensão territorial que jamais conseguirão controlar. Não bastasse esta imensidão de terras entregue por Collor de Mello a um punhado de seres primitivos, incapazes de constituir ou gerir um Estado, o presidente Fernando Henrique Cardoso acaba de demarcar uma área ainda maior, de 10,6 milhões de hectares (território equivalente a Cuba) na região conhecida como Cabeça do Cachorro, no noroeste do Amazonas.

A demarcação, feita com patrocínio do G-7 (grupo formado por EUA, Japão, Canadá, Alemanha, França, Grã-Bretanha e Itália) revoga e engloba 14 "ilhas" descontínuas, criadas durante o governo Sarney (1985-90). Antes da nova demarcação, as 14 "ilhas" tinham apenas 2,6 milhões de hectares. Esta Cuba será entregue a cerca de 30 mil índios, quase 10% da população indígena do Brasil, espalhados em 600 comunidades de 23 etnias, como baré, suriana, maku, baniwa e tucano, entre outras.

Detentores de 11% do território nacional, os 325 mil índios brasileiros se candidatam fortemente à condição de maiores latifundiários do planeta. Ironicamente, habitam o mesmo país em que o Movimento dos Sem-terra (grupos armados de fuzis, foices e facões, organizados pela Igreja Católica) invade e desmonta propriedades produtivas, com técnicas de guerrilha e sob as bandeiras de Mao Tse Tung e Che Guevara. Alegam os defensores dos “povos da floresta” que todo o território brasileiro lhes pertencia, antes da chegada dos portugueses. Ocorre que os nativos não pediram passaporte a Cabral, nem lhe exigiram visto de entrada. Ora, sem Estado constituído, povo algum pode pretender a posse de qualquer território.

Postos em quarentena pela antropologia militante, isolados deste século por uma política oficial de Brasília, uma merencória opção é deixada aos autóctones de Pindorama: morrer de fome ou depender da caridade pública. Integrar-se ao século XX, jamais: os antropólogos precisam preservar, congelados no tempo, seus objetos de estudo.

Assim prepara-se o Brasil para entrar no terceiro milênio. Deixando para trás, perdidos no passado, seus primeiros habitantes.

Comentários

  1. Como levar a verdade da terra brasileira als donos da terra em tamanho estraho feito por a pessoa estrangeira em detrimento da nacao?? Seria como avreditar na existencia do caci perdre
    Ops sa i perere

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